Brecht: a exceção e a regra

Leonardo Rodrigues de Oliveira

Em diversos momentos da formação social da humanidade passamos por crises que causaram a detração do direito primordial do homem à democracia. Nesses momentos, poucos realmente se levantaram contra essa opressão e fizeram de seu pensamento, uma luz de esperança para aqueles que necessitavam. É nesse ponto em que a vida e obra de Bertold Brecht expressa toda sua riqueza e importância para nossa sociedade moderna e para suas futuras gerações. O dramaturgo foi um militante e intelectual que dirigiu todos seus esforços para a construção da liberdade de pensamento e manutenção de uma sociedade mais justa, em defesa dos oprimidos.

Discutir a vida e obra de Bertold Brecht é fazer uma reflexão incontestavelmente humana e ácida sobre uma sociedade moderna e indiferente. Somos colocados diante de uma obra que nos leva a uma posição questionadora dessa realidadeconcreta em que vivemos. A obra do dramaturgo mundialmente reconhecido reflete a luta contínua e inconfundível do ser humano sensibilizado por uma sociedade verdadeiramente livre.

A obra de Brecht entrelaça-se e é influenciada radicalmente pela vida conturbada levou em seu tempo. Nascido em 10 de Fevereiro de 1898, em Augsburgo na Alemanha, Bertold Brecht logo entraria em contado com os fatos que certamente o tornariam um defensor das causas humanas: a Primeira e Segunda Guerra Mundial.

As influências desses tempos sombrios na vida de Brecht não são uma casualidade qualquer. O dramaturgo serviu como enfermeiro na primeira guerra mundial, e com essa experiência teve contato com o que pior a guerra pode oferecer: a fome, a repressão e os massacres. Estas experiências afetaram profundamente seu estilo livre de denunciar as atrocidades cometidas pela humanidade.

A forma militante de escrever e criticar a opressão sobre sociedade daqual fazia parte, juntamente com a sua conversão ao socialismo, provocou uma intensa perseguição do regime nazista. Tal repressão levou o autor apassar diversas dificuldades de ordem financeira e de segurança que posteriormente levou ao exílio.

A massiva perseguição sofrida por ele levou-o a mudar-se freqüentementede moradia. Essa peregrinação se tornou constante, levando-o a se abrigar em países como França, Dinamarca, Finlândia e Estados Unidos, onde permaneceu por seis anos. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, Brecht voltou a Europa e residiu em Berlim, na Alemanha Oriental até a sua morte, em 14 de Agosto de 1956.

A vida conturbada e opressiva vivida pelo autor fortaleceu no dramaturgo seu caráter denunciador, e, precocemente o lançou na dramaturgia e na literatura. Ainda muito novo optou pelo expressionismo sem se agarrar a nenhuma escola literária. A prática de uma arte dramática não aristotélica (sem normas) lhe permitiu romper com regras secularmente estabelecidas de forma e fundo.

A liberdade do rompimento com as formas daria a seu discurso literário mais espontaneidade e mais plasticidade. Dessa forma, manejou toda sua obra demaneira mais sábia, em defesa da liberdade do homem e fez com que seu pensamento chegasse a todos, que nele, encontrassem conforto e coragem.

O escritor apareceu na fase crepuscular da burguesia, em plena ascensãodo movimento operário e em meio a uma intensa transição social. Embora ligado ao partido comunista, não se subordinou ao realismo socialista, mas, opôs-se aele com ardente tenacidade. Brecht acreditava que o intenso embate de forças antagônicas entre socialismo e o regime nazista era o principal motivo do fortalecimento de Hitler e acabaria por causar as atrocidades verificadas, mais tarde, no desenrolar da Segunda Guerra.

Umas de suas grandes características que ecoa ainda hoje é a crítica da aparente liberdade de nossa sociedade moderna e sua recusa de aceitar uma poesia alheia aos acontecimentos sociais. O autor exigia que ela fosse atuante, moderna e a serviço de uma revolução.

Mesmo atuante, não se submetia ao convencionalismo e aos preconceitos sociais. Aceitou em sua obra a concepção de Hegel, de que há nos fenômenos artísticos uma realidade superior e uma existência mais verdadeira em comparação com a realidade habitual e cotidiana.

Para atingir o homem do seu tempo o pensador almejou um entrelaçamento da arte com a ciência. Nessa soma procurou justificar o seu papel nas letras sociais e políticas do seu mundo. Um teatro eminentemente político, aberto e declaradamente a serviço da causa operária e da revolução social. Tal fato conferiu à obra do autor um caráter pontualmente universal.

A voz universal emanada da obra desse escritor e pensador, transcendeu às barreiras de seu tempo, e, se reflete na modernidade de nosso tempo como uma luz a dissipar a neblina do conformismo que cobre nossa sociedade. Essa voz de libertação e universalidade de pensamento é o bem mais precioso herdado por nossas gerações, pensamento esse caracterizado a seguir:

 

Aos que vierem depois de nós

(Tradução de Manuel Bandeira)


Realmente, vivemos muito sombrios!
A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas
denota insensibilidade. Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.

Que tempos são estes, em que
é quase um delito
falar de coisas inocentes.
Pois implica silenciar tantos horrores!
Esse que cruza tranqüilamente a rua
não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda?

É certo: ganho o meu pão ainda,
Mas acreditai-me: é pura casualidade.
Nada do que faço justifica
que eu possa comer até fartar-me.
Por enquanto as coisas me correm bem
(se a sorte me abandonar estou perdido).
E dizem-me: "Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!"

Mas como posso comer e beber,
se ao faminto arrebato o que como,
se o copo de água falta ao sedento?
E todavia continuo comendo e bebendo.

Também gostaria de ser um sábio.
Os livros antigos nos falam da sabedoria:
é quedar-se afastado das lutas do mundo
e, sem temores, deixar correr o breve tempo.

Mas evitar a violência, retribuir o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, antes esquecê-los
é o que chamam sabedoria.
E eu não posso fazê-lo. Realmente,
vivemos tempos sombrios.

Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente
e não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.
A palavra traiu-me ante o verdugo.
Era muito pouco o que eu podia. Mas os governantes
Se sentiam, sem mim, mais seguros, — espero.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

As forças eram escassas. E a meta
achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente,
ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Vós, que surgireis da maré
em que perecemos,
lembrai-vos também,
quando falardes das nossas fraquezas,
lembrai-vos dos tempos sombrios
de que pudestes escapar.

Íamos, com efeito,
mudando mais freqüentemente de país
do que de sapatos,
através das lutas de classes,
desesperados,
quando havia só injustiça e nenhuma indignação.

E, contudo, sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz. Ah, os que quisemos
preparar terreno para a bondade
não pudemos ser bons.
Vós, porém, quando chegar o momento
em que o homem seja bom para o homem,
lembrai-vos de nós
com indulgência.”

Poemas 1913-1956

 

 

Em fim, o dramaturgo representa na contemporaneidade um grande impulso para o amadurecimento de uma arte verdadeiramente social e a serviço do próximo. Uma obra que nos ajuda a pensar sobre toda a forma de reflexão aserviço de uma sociedade conjunta, de um todo e não somente na construção de um pensamento separatista, dividido socialmente.

Com sua arte efusiva, Bertold Brecht nos leva a uma percepção crítica da realidade, a uma contestação do cotidiano tão freqüente, tão comum e tão usual. Desconfiando sempre, do que nos parece tão vulgar e imperceptível, o pensador se torna a regra, por traduzir na sua obra um verdadeiro e constantemente exigido sentimento de humanidade (diante detodos os pensamentos a serviço do próximo), e a exceção, por se tratar daqueles poucos que se levantaram diante da lastimável voz da opressão.