O
que happenings em São Paulo???
Aline
Serzedello Vilaça Graduanda
em Licenciatura e Bacharelado em Dança (UFV)
Saía do Cine Sesc na Rua Augusta em São Paulo, um cinema Cult, muito bem freqüentado (se o critério que qualifica “bem” tem como parâmetro referencial econômico, intelectual ou fashion/visual), localizado em um rua cuja a vocação comercial é intensificada durante os dias e as noites e badalada nas madrugadas dançantes. Ao virar à direita sentido av. Paulista, observei um pequeno grupo de aproximadamente uns quatro funcionários de uma loja, na calçada cochichando de maneira a se fazerem percebidos. Em sua cena de disfarçar teatralmente a ansiedade com que assistiam o que indicavam freneticamente por comunicação corporal, acabei caindo por curiosidade na cilada e olhei o que eles indicavam. Lá estava um senhor de um 60 anos ou muito mais ou muito menos, castigado fisicamente pela rua, com a pele envelhecida pelo tempo e exposição contínua ao sol e à chuva, vestes imundas como a Margarida*. Mas o fato que tanto chamou atenção do cochicho sarcástico do grupo de amigos, que horrorizou os transeuntes e sujou minhas mãos, era que o desconhecido senhor estava defecando na calçada tão exuberante e disputada da Rua Augusta, agachou e expeliu uma montanha de um marrom claro aparentemente mole, digna de um quadrúpede. Primeiro fiquei chocada com o sarcasmo debochado com que o grupo de amigos assistia a cena, e como aquela audiência mostrava que mesmo trabalhando, muitos de nós, não temos realmente nada mais útil para cuidar, pelo visto nem mesmo nossas próprias vidas muitas vezes simplórias (mesmo sendo do partido que toda vida é importante, mas estou nervosa), são cuidadas com mais atenção do que a vida alheia. Depois fiquei com mais raiva dos demais “acostumados” paulistanos que quando olham para os moradores de rua tão humanos quanto eles, o fazem com cara de nojo e em seguida viram o rosto de maneira cinematográfica empinando seus narizes mostrando seu ar pretensioso de superioridade vazia de compaixão. Terceira reação, meu estômago começou a se contorcer, meu coração novamente foi se esconder no meu pé, e senti mais uma porção de coisas, do tipo: vontade de conversar com aquele senhor e levá-lo pelo braço, apenas no gesto de ajuda para seu andar (sem repreendê-lo), até o banheiro mais próximo para que ele fizesse suas necessidades de maneira mais digna. Mas, neste momento, questionei se é signo de dignidade fazer cocô escondido em seu próprio banheiro limpo. Enquanto imaginava quem seria aquele senhor, como ele foi parar naquela situação de sobrevida, como conseguiu a coragem de não apenas sentir tamanho descaso pela metrópole que nos engole, mas mostrá-lo com tanta presença artística. Pensei, como costumeiramente quando vejo um morador de rua, como teria crescido essa criança e em que momento ela de fato percebeu, que a ela sonhos não eram permitidos. Mas, como toda humana de alma rasa clamando por ascensão e sabedoria também senti nojo, e claro que com isso me senti mortal e assim coube lembrar desta minha parte desprezível, e sentir mais culpa por não me permitir sentir nojo embora o sentisse. Mesmo não sendo do homem e sim do cocô. E como citei, dentre o vulcão de sensações e pensamentos que me rodearam durante aqueles segundos em que me virei para a direita e passei pela cena de cabeça semi abaixada, também senti medo e inveja de tamanha liberdade, e claro ódio, de mesmo revoltada, aceitar a miséria de grande parte da população deste Brasil penta que tanto acredito, mesmo não assistindo aos jogos. E por fim, sem mais enumerar, pois essa prática é por demais metódica para meu ser sensível, lavei as mãos várias vezes e passei horas sentindo-as sujas, imundas... Agora, pergunto... Será que estava com gastura dos meus pensamentos mundanos, com asno do material orgânico fétido, ou com raiva de estar sempre de mãos atadas, boca calada e sem minha câmera fotográfica diante da miséria constante desta cinza cidade, e tudo isso ficou impregnado em minhas mãos???? Eu realmente tenho minhas teorias sobre o impacto em minhas mãos, mas meu propósito com este texto é outro, e começa agora... O famoso artista contemporâneo alemão, aclamado pela crítica ferrenha especializada em Arte Contemporânea e Pós-Moderna, Performances, Instalações e Happenings. Que costuma chocar as platéias mais tradicionais, e impressionar de maneira apaixonante os intelectuais de vanguarda, após meses de pesquisa corporal, gestual, teórica e sócio-político- cultural vem ao Brasil nos presentear com a sua mais nova criação inspirada na realidade caótica dos grandes centros econômicos, apresentando sua performance nas principais ruas de maior movimento de algumas capitais brasileiras. A obra intitulada “Koten”. Será narrada a seguir... “Em três tempos de 8 (semelhante a contagem coreográfica/musical de dança o típico, “1, 2, 3 e 4 e 5, 6, 7 e 8”), lentamente de maneira sustentada e forte o renomado artista alemão começa a agachar, lentamente quase em movimentos de butô ele leva os braços que estavam ao longo do corpo para repousarem nos joelhos que estão cada vez mais próximos de estarem totalmente flexionados, em uma bela posição acocorada, semelhante a bucólica figura de um caipira a mastigar um mato no canto direito da boca, o artista fica durante 7 minutos a observar com o olhar distante as pessoas que passam pelas ruas a sua volta, como se não se interessasse por elas, tampouco consigo mesmo. Após os 7 minutos, quebrando a lentidão de seus últimos movimentos, ele corre as mãos até sua calça e voltando a lentidão que incomoda profundamente quem curiosamente interrompe seu trajeto para aumentar a platéia de transeuntes que vai se formando, o artista começa a despir calça e cueca. E, quando finalmente calça e cueca já se encontravam nos tornozelos o brilhante performer começa a defecar sem mudar sua expressão de total descaso do rosto. Assim que termina de defecar, veste cueca e calça e sai lentamente sem olhar para trás.” Trata-se de uma performance tão escatológica quanto obras como O Cortiço. Se essa descrição não fosse pura invenção minha, criada após lavar as mãos algumas vezes depois de ver aquele senhor na R. Augusta. Eu poderia continuar dizendo que: a crítica especializada e amante desta Arte Contemporânea cruel, escatológica, realista, às vezes libertadora, transgressora, vanguardista, determinista, verdadeiramente expressiva, que joga no belo rosto dos economicamente favorecidos que a consomem e conhecem o quão deplorável está o mundo, (ou a meu ver quão desesperadas estamos), diria que a performance foi arrebatadora, visceral, e proporciona belas críticas severas ao nosso atual modo de vida nos grandes centros, a relação de carinho ligado a noção de lar e desprezo ligada ao sentimento de sufocamento que as grandes cidades nos provocam, quanta contradição... Eu diria com um sorriso espertinho acompanhado de mais revolta política no peito que o senhor maltrapilho desprotegidamente destemido fizera um happening que segundo uma querida mestre, Solange Caldeira, “são como festas momentâneas, não premeditadas, como rituais que remetem à dialética do sagrado e do profano.” [p.22] mostrando todo seu descaso a sociedade que o exclui, reafirmando a posição periférica que se coloca e fora colocado, mostrando poder diante da cidade, das ruas que são mais suas porque nelas habita, ignorando arrogantemente o olhar de todos, desprezando com autoridade hierárquica aos demais moradores com teto, transgredindo todas as limitadoras noções de educação, etiqueta e respeito que talvez facilitem a vida em sociedade, tornando explicito que nossa romântica noção de coletivo seja de uma fragilidade e talvez farsa convencionada, pois o que vemos diariamente são milhares de pessoas apressadas Sozinhas. E a descrição de “Koten” acima seria uma performance que segundo a mesma autora: “Contrariamente aos happenings e suas ações, na noção de performance a intervenção individual, verbal, multimídia, musical ou dançada, coloca o público no papel de espectador, ativando suas forças sociológicas ou psíquicas. Não há um único significado, há um fenômeno suscitado por um impulso de conivências entre as mídias exploradas e em todos os países onde a atividade artística da vanguarda se desenvolve. É importante recordar que a gênese dessa nova forma é o aspecto da resistência á cultura burguesa. O artista é um rebelde, um insubmisso que expressa sua liberdade individual. Trata-se de uma atitude frente à vida, tanto do ponto de vista do domínio estético, quanto político, situado na energia das ideologias da contracultura dos anos 60, onde os artistas acusam a sociedade de fazer das artes um meio de prestígio e não um canteiro de comunicação.” Por fim... Mas não finalmente, acho que entrei no meu tema: A criação artística a partir do cotidiano.Você leitor já deve ter percebido que meu contexto mudou drasticamente, Cristais, Paraíso, Reta, Roça, parece que magicamente como num pesadelo por vezes sonhos se transformaram em Rua Augusta, Av. Paulista, Santos Dummont engarrafada, Tiradentes congestionada e Marginal claro desagradavelmente perfumada. E essa mudança de ambiente mudou também minhas fontes de inspiração artística, que aqui na metrópole tem maior ponto de partida nas cenas que me incomodam do que nas que me emocionam, pois a beleza da natureza das montanhas mineiras foram substituídas pela agressividade do cinza constante, pela nauseante miséria a olho nu, pela tensão do congestionamento básico de em média 80 km em toda capital paulista. Com isso comecei a enxergar atitudes exageradas, desesperadas e sensíveis do cotidiano do homem comum (no caso, não artista) como happenings e performances, pois carregam uma expressividade digna de palco e mídia, mas por vezes passam despercebidas pela rotina que nos engole. Performances do cotidiano, criadas a partir de obstáculos que o dia-a-dia nos impõe, e tão dramáticos quanto algo cuidadosamente elaborado por um grande artista, aparecem avidamente com uma constância impressionante, por exemplo... Na Tailândia milhares de pessoas lavaram as ruas com sangue em protesto, quer algo mais político do que sair às ruas em prol de outros, e algo mais dramático cênico, visceral do que dar seu próprio sangue para uma obra, digo uma manifestação pública? Quer figura estética mais dramática do que esta vermelhidão derramada? Não foi um protesto pacífico, sensível e estético, mais político e artístico que você viu nos últimos tempos? Em Guarulhos em homem entrou no supermercado e num rompante de fúria e confusão psíquica começou a torto e direito a esfaquear qualquer pessoa que via pela frente. Foi absurdo, doentio, criminoso, mas quer algo mais espontâneo, mais reflexo da epidemia que assola a humanidade que sobre-vive ao/no caos do mundo (talvez) pós- contemporâneo? Quer algo mais desvairado para compor uma cena de terror? Quer algo que represente expresse de maneira tão grotesca, com mais verdade o desespero interior de toda uma geração? “Beto Buracão”, aqui ao lado, sentado em um sofá, é um boneco que foi batizado pelos moradores das imediações do Terminal João Dias, para tampar um buraco no asfalto, enquanto a Sabesp não resolvia o problema. Eis ai uma instalação que partiu da necessidade do perigo de cair, que de maneira debochada e divertida chamou a atenção após muitos dias, das autoridades responsáveis em tampar a cratera. Quer algo mais artístico critico- social que isso, quer uma instalação mais Contemporânea que esta que homenageia Kassab? Exemplos, que reafirmam o quanto a Arte parte da necessidade, e como a criação artística pode se nutrir de diversos olhares e referenciais e das mais inusitadas inspirações. Mas acima de tudo me fez refletir a cerca do que criarei quando tiver a maturidade suficiente para produzir o que possa ser considerado Arte “na acepção máxima do vocábulo” como diria Monteiro Lobato. Provavelmente não passarei cocô na parede, (embora isso me remeta a uma liberdade assustadora), não derramarei meu sangue (embora seja romântica suficiente para acreditar em tal entrega), nem construirei bonecos gigantes (pois prefiro o que expele de minha natureza e não tenho habilidade tamanha com as mãos), mas espero alcançar este dia e poder ser merecedora de viver para ver que o meu fazer artístico, que minha Arte, escrita, cantada ou dançada, possa motivar mais pessoas a transformem seus gestos cotidianos em criações político- crítico- sociais sensíveis, que transformem seu olhar, e não se acostumem diante de tudo que “happening” em suas cidades.
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