Gizele Zanotto, Giselda Brito Silva, Daniele da Silva Benicio e Ana Maria Dietrich
Organizadores edição 16
“O Autoritarismo é uma manifestação degenerativa da autoridade. Ela é uma imposição da obediência e prescinde em grande parte do consenso dos súditos, oprimindo sua liberdade” – Mario Stoppino
Pensar e fazer História, como prática reflexiva e analítica, pauta-se em nossos interesses, dúvidas, incertezas e questões contemporâneas. Ao prospectarmos o dossiê que ora apresentamos, estávamos movidas pelo ensejo de refletir mais profundamente sobre a dureza e a complexidade implicada em autoritarismos e em seus modus operandi, muito afeitos a repressões físicas, morais e psicológicas. Também nos movia o interesse em mapear, avaliar a riqueza, diversidade e criatividade das formas de resistência realizadas pelos agentes históricos em contextos autoritários. Nos últimos meses a temática tornou-se ainda mais necessária no cenário internacional de ascensão de radicalismos e, em seu bojo, degenerações de autoridade de vários matizes. Da mesma forma, no cenário nacional se observa alguns apelos da direita radical, defensora do retorno do regime militar, questionando a validade da democracia e das liberdades individuais e de grupos conquistadas ao longo dos últimos anos. Nesse sentido, discutir Autoritarismo, resistência e repressão na contemporaneidade adequa-se – tristemente – ao repensar de nosso dia-a-dia.
O dossiê inicia com o artigo Bela, recatada e do lar: atuação sócio-política das mulheres pernambucanas no movimento integralista, que discute a agência de mulheres na década de 1930 em um movimento que promovia as noções de beleza, recato e dedicação ao lar para esse grupo de membros. A aparente incoerência de uma participação em um movimento que defende o modelo tradicional de mulher/mãe coaduna-se com a perspectiva de que sua atuação se voltasse a obras sociais, caritativas e educacionais, de certo modo apartando-as do cenário político e público, espaço este dedicado preferencial, quando não exclusivamente, aos homens. Em parte, esta percepção deriva da compreensão entre público e privado que marcou a sociedade brasileira nos anos trinta, tempo em que a mulher ainda era educada para as funções do lar, do casamento e da maternidade (claro, mulheres de condição média e alta, visto que as demais tinham de prover seu sustento). Todavia, mesmo que o integralismo tenha ampliado seu escopo para abarcar mulheres em seus quadros, a ênfase, como nos mostra a autora Helisangela Maria Andrade Ferreira, mestra em História Social da Cultura Regional (UFRPE-PE), deveria ser a compreensão e vivência da maternidade, seja ela biológica ou social.
O segundo texto de Francisco Carlos Teixeira da Silva (UFRRJ-RJ) também se dedica a uma análise de grupo social específico. No artigo Em Nome da Honra: Pederastia e Camaradagem Masculina no Estado Novo (Brasil, 1937-1945), analisa como a repressão estado-novista lidou com a questão da homoafetividade no corpo militar – e seus parceiros civis -, a partir do estudo de processos do Tribunal Superior Militar. Visando promover a denominada “camaradagem sã”, o Regulamento Disciplinar do Exército defende, em seus artigos, a compostura, o decoro militar, físico e moral como ideais. Além da depreciação moral, subjetiva e social, os militares homossexuais cumpriam penas específicas que lhes impunha outros tipos de punição, além das violências sexuais que também sofriam durante o encarceramento. As preocupações com a homoafetividade – assim como com o papel da mulher em sociedade, como no artigo anterior – faziam parte da retórica da constituição da nação e, à época, das discussões sobre a raça brasileira.
Um testemunho específico sobre o passado nazista alemão é foco da análise apresentada no texto Entre história e memória: o testemunho literário Die Wiesse Rose, que analisa a obra de Inge Scholl publicada em 1952 na então Alemanha Ocidental. Analisando as questões relativas à memória, em articulação ao suporte literário, a autora Maria Spaulucci Feltrin (UNICAMP-SP) evidencia o esforço de rememoração realizado por alemães que vivenciaram o período de governo do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães pelo viés da resistência realizada pelo Grupo “Rosa Branca”. A resistência promovida pelos seus membros foi narrada a partir da participação dos irmãos Hans e Sophie Scholl naquele grupo que atuou entre 1942 e 1943 em Munique, quando foram mortos pela Gestapo.
Os primeiros artigos versaram sobre os anos 1930 e 1940 no Brasil e Alemanha, evidenciando como os laivos autoritários, repressivos e as formas de vivenciar e rememorar tais contextos podem ser abordados. Um segundo grupo de artigos deste dossiê centra-se em outro importante período histórico, a ditadura militar brasileira iniciada em 1964 e findada somente 21 anos depois. O primeiro texto deste grupo analisa a relação entre a imprensa e o golpe civil-militar com a análise do jornal Folha de São Paulo. Parte importante da atuação dos editores do periódico foi dedicada a deslegitimação do governo de João Goulart que, de certo modo, levou a consideração de sua impossibilidade de sua manutenção. No limite, tal retórica auxiliou na legitimação do golpe civil-militar, como evidenciado em A Folha de S. Paulo e o bonapartismo: legitimando o golpe civil-militar de 1964 do doutorando Valdemar Gomes de Souza Junior (UFABC-SP).
Os demais textos sobre o período militar abordam artes e repressão. Em Império do desejo e da anarquia: o cinema erótico politicamente engajado de Carlos Reichembach do autor Romulo Gabriel de Barros Gomes, mestre em história (UFPE-PE) discorre sobre a produção cinematográfica de Reichenbach como meio também de realizar política. Para tanto são analisadas produções do diretor dedicadas a pornografia/pornochanchada evidenciando o uso político de discussões, cortes e críticas dos personagens foram vetores de expressão para a contestação social. Saindo do olhar comum sobre a pornochanchada, o trabalho problematiza os limites da censura, bem como os usos possíveis para o cinema em tempos ditatoriais. Também contestando a ditadura militar no país, destaca-se a banda de rock Tutti Frutti, criada em 1971 e instigada a produzir música engajada, contestatória e libertária, ante o cenário político brasileiro. Este é o mote do texto dos autores Alexandre Saggiorato e Edemilson Antônio Brambilla (UPF-RS) Rock em tempos de repressão e censura: a ditadura militar e os álbuns da banda Tutti Frutti. Formada no cenário paulista pelos músicos Luis Sérgio Carlini, Lee Marcucci e Dmilson Colantonio, a banda inicialmente intitulava-se Coqueiro Verde. Posteriormente alterou o nome para Lisergia e em 1973 adotou Tutti Frutti, quando também da renovação do grupo, com a incorporação de Rita Lee. Afetados pela censura, percalços técnicos e baixo público, os músicos não arrefeceram e progressivamente conquistaram o cenário musical. Com o lançamento de álbuns que tiveram ampla repercussão cultura e política.
O dossiê conta ainda com o artigo PRENDÊ-LO. EVITEM: as ruas do Recife como palco para a repressão policial sobre o padre Lawrence Edward Rosenbaugh (1977-1980). A proposta da análise é evidenciar a figura de Padre Lawrence Rosenbaugh em sua atuação política, assistencial e religiosa, em prol da defesa dos pobres e dos direitos humanos. Sua agência nas comunidades carentes levou a conflitos com a polícia que produziram o manancial de fontes de análise do autor Márcio André Martins de Moraes, doutorando em História (USP-SP). Pelos documentos do DOPS de Pernambuco revelam-se os meandros que envolveram as prisões do padre e que encetaram um acompanhamento de suas atividades e geraram dossiês de informações, manancial da repressão. Mais do que um estudo de caso, o texto revela procedimentos, registros, conformações de representações sobre os ditos subversivos observados, reprimidos, torturados e mesmo mortos pelos agentes estatais em prol da manutenção do status quo ditatorial.
Para fechar o dossiê, temos o artigo Repressão e resistência: um panorama da luta indígena pela terra na contemporaneidade de Guilherme Duarte Figueiredo de Souza, estudante de Relações Internacionais na Universidade Estadual Paulistas (UNESP). Em seu artigo, Guilherme analisa a situação agrária no Brasil a partir da perspectiva indígena, a partir de uma reflexão sobre a conjuntura de repressão dos movimentos indígenas e a participação do Estado brasileiro no processo de subtração de direitos dessas comunidades.
Na seção de Artigos Independentes contamos com diversas contribuições em diferentes campos de estudo. A seção inicia com A inclusão escolar e os alunos com altas habilidades/superdotação das pedagogas Valéria dos Espírito Santo Coelho (UNISANTOS-SP), Patrícia Gonçalves Cestari (UNISA-SP) e Elizabete Batista da Silva Lima (UNISA-SP). O artigo trata da importância da educação especial sob o prisma dos alunos com altas habilidades/superdotação como parte integrante da educação inclusiva.
No artigo O conceito de antiarte segundo Frederico Morais, a mestra em Artes, Tamara Silva Chagas (UFES-ES), discute a noção de antiarte no contexto da produção do crítico Frederico Morais, durante as décadas de 1960 e 1970, momento marcado pela evidente decadência da narrativa modernista de arte, incapaz de apreender em seu discurso a produção artística pós-moderna.
Os autores Ozaias Antônio Batista, doutorando em Ciência Sociais, e a doutora Ana Luadelina Ferreira Gomes (UFRN-RN) discutem sobre o espaço que a ciência moderna e o imaginário poético que se apresenta como resistência aos limites do cientificismo, aproximando as imagens poéticas e os conceitos em um mesmo plano discursivo em seu artigo Ciência e Imaginário poético: reflexões para uma interface da razão com a imaginação.
Já em Controlar e reprimir: a criminalidade em Bragança-pa no início do século XX, o mestrando em Artes Aldair José Batista de Souza (UFPA-PA) aborda as estratégicas de sobrevivência e o cotidiano popular envoltos em imposições regulamentares e de convivência em Bragança do Pará no início do século XX. Sua pesquisa centra-se nas ações de um grupo de criminosos que agiam nos espaços urbanos da cidade.
Em Reflexões sobre a divulgação da Matemática em exposições e museus científicos, a doutora Virgínia Cardia Cardoso (UFABC-SP) apresenta algumas reflexões sobre a divulgação da Matemática em exposições e museus de ciências da região da Grande São Paulo, e as implicações pedagógicas deste tipo de exposição.
Ainda no campo da educação, o artigo Sobre os limites das novas tecnologias na educação: uma reflexão das autoras Larissa Buratto Vasconcelos mestranda em Ensino e história das Ciências e Matemática (UFABC-SP) e a doutora Márcia Alvim, discute sobre os limites da relação entre tecnologia e educação, encaminhando a discussão para a importância da escola e do professor como contribuintes para a formação de cidadão críticos e reflexivos.
Esta edição conta ainda com uma Resenha e uma Entrevista. Temos a contribuição de Alan Ferreira dos Santos, Gilberto Yoshio Suzuki (UFABC-SP) sob a orientação da doutora Ana Dietrich, com a resenha Chega de Saudade, analise do filme que conta a história do clube chega de saudade, baile de terceira idade que acontece em uma única noite na cidade de São Paulo. E a Seção de Entrevista traz a contribuição da jornalista Daniela Silva com a sua conversa com Betina Rodrigues, cantora curitibana que também atua como designer e ilustradora.
Espera-se que os diálogos e debates aqui propostos contribuam para que os leitores dessa revista reflitam sobre essa temática tão contemporânea e eme